segunda-feira, agosto 22

A ESCOLA SEM MEDO? UMA ABORDAGEM DA PEDAGOGIA SEGUNDO RUDOLF STEINER

Parecia ser inevitável, na nossa civilização, que o percurso escolar de uma pessoa estivesse ligado ao medo. Conhecemos as histórias do quarto escuro, da palmatória, das orelhas de burro à janela, da permanência em horas extraordinárias, da peregrinação por outras salas com dísticos esclarecedores do “crime”, etc., etc.!
Felizmente que sucessivas legislações vieram refrear estas medidas “pedagógicas”.


No entanto, o medo não desapareceu. Conhecemos as histórias de crises asmático-nervosas, de vómitos, de diarreias, de insónias, de gaguez, de violência gratuita, de estados de apatia continuada. Com a ajuda de médicos e de psicólogos, pais e filhos desorientados chegam à conclusão que frequentemente a causa primeira desse desequilíbrio psicossomático é a escola.
A escola?! E agora? Olha-se à volta e as escolas, públicas ou privadas, religiosas ou laicas, apresentam quase sempre um panorama idêntico: há professores que se dão muito bem com os alunos e aí as coisas correm bem; há outros que nem tanto e aí correm mal. Na realidade, o MEDO anda por todas elas. Medo de quê?

Medo de quase tudo: dos testes, das notas, do trabalho a entregar, de desiludir os pais, de desiludir os professores, de dar o salto no plinto, de ir à visita de estudo e enjoar no autocarro, de descrever numa folha todos os passos do voleibol, de não arranjar namorado, de não ser escolhido para a equipa do torneio inter-turmas, de ser chamado ao conselho directivo, de ser ridículo com os ténis sem marca, de não decorar as fórmulas de química, dos colegas grandes do último ano, dos jogos no pátio, do professor de matemática, de perder o autocarro, de ir às casas de banho e ficar fechado, de VIVER!

A maioria destes medos advém da consciência que a criança tem de, numa avaliação do seu desempenho, não atingir aqueles misteriosos objectivos mínimos que é suposto ela atingir e que lhe foram expressamente explicados no início das aulas. A partir desse momento a criança perdeu a sua inocência na espontaneidade do perguntar e aprender: ela sabe que tudo o que fizer, disser e mostrar é para a avaliação e passa a estar envolvida numa atmosfera de medo difuso. A punição, outrora exterior, interiorizou-se, agredindo agora a criança nos seus sistemas orgânicos. Já não lhe doem as mãos ou as nádegas: ela tornou-se asmática ou sofre de vómitos frequentes.
Temos que reelaborar toda a concepção de escola e de praxis pedagógica, incluindo o conceito de avaliação - porque ela existe. A pedagogia Waldorf
Em 1919, Rudolf Steiner, engenheiro austríaco, posteriormente doutorado em filosofia, fundou em Stuttgart, na Alemanha, a primeira escola livre, ligada à fábrica de cigarros Waldorf-Astoria. Os alunos eram filhos de operários, de dirigentes e também de pais alheios à fábrica, que optavam pela pedagogia ali seguida, baseada no estudo aprofundado do Conhecimento da Natureza Humana. Actualmente são mais de 500 as escolas espalhadas por todo o mundo.
De acordo com a sua concepção, o Homem é um ser físico, anímico e espiritual, cujo desenvolvimento decorre por fases, cada uma com necessidades intrínsecas. Estas exigem uma prática pedagógica adequada, só tornada possível pelo estudo da Natureza Humana.

Assim, durante os primeiros sete anos de vida, a criança vai completando (metamorfoseando) os seus órgãos vitais até que atinjam a sua forma definitiva, por altura da entrada para a escola. Neste 1o septénio, ela entrega-se desprotegida e confiante ao cuidado de terceiros, normalmente os pais, de quem vai recebendo amor e carinho mas, também, modelos e orientações de vida. Nesta fase, a criança aprende por imitação: exterior, no que se refere aos gestos de todos os dias, às actividades básicas de higiene, alimentação, vestuário, caminhar, falar; e interior, porque na criança se dá inconscientemente a imitação da qualidade dos estados de alma do adulto com quem convive e com quem aprende a pensar. A criança sente - pressente - a alegria ou a angústia, a honestidade ou a hipocrisia, o amor ou a indiferença. Todo o meio envolvente está em comunicação “não filtrada” com a alma infantil, que se lhe entrega plena de confiança. Todas as vivências - e a sua qualidade - penetram na criança actuando sobre o processo de metamorfose dos seus órgãos. Daí que determinadas emoções vividas nesse período venham a manifestar-se muito mais tarde, já em idade madura, como doenças orgânicas crónicas, mais ou menos graves. Se, porém, o ambiente em que cresceu foi saudável e sem mesquinhez, com gente procurando o bem, então, é provável que venha a dispor de uma constituição orgânica robusta e sã. É evidente que muitos outros factores podem influenciar ou mesmo determinar estados de debilidade física mas isso não invalida, aliás reforça, a necessidade de se proporcionar à criança até aos sete anos uma atmosfera familiar e social (jardim de infância) que lhe permita completar a formação saudável dos seus órgãos, base de toda a sua vida. Para isso é necessário que todos os sentidos sejam estimulados naturalmente, pelo que se deve cuidar das qualidades do som, da cor, dos materiais, da alimentação, do calor. Este cuidado, longe de a mimar, dar-lhe-á alicerces para o futuro, fortalecendo-lhe a VONTADE. O quotidiano no jardim de infância, reproduzindo tanto quanto possível o de uma grande família, com o seu ritmo natural de trabalhar e brincar, com as histórias que a avó conta(va) aos netos, constitui o ambiente propício ao desenvolvimento feliz da criança.

Quando é atingida a maturidade para entrar na escola, o que se dá por volta dos sete anos (a tendência actual é de precocidade, com os perigos que qualquer precocidade contra-natura pode trazer consigo), a maioria das forças vitais que se empenhavam no seu organismo ficam disponíveis e poderão ser encaminhadas para uma aprendizagem sistematizada. A imitação, embora actuante (ela subsistirá até ao fim da vida), vai perdendo relevância e o que se torna agora importante é o desejo de admirar, de venerar alguém que lhe revele o mundo exterior. A criança há muito que se apercebeu da sua existência mas já não se lhe entrega incondicionalmente como dantes.

Agora, ela recolhe-se frequentemente no seu mundo interior e precisa de um mediador em quem possa confiar, como dantes confiou no seu meio envolvente. Esse mediador querido (nos sentidos de querer e amar), para quem a criança eleva todo o seu ser interior num acto de veneração genuína, será desejavelmente o professor - aquele que lhe traz a beleza do mundo até si. Quando isto é conseguido, o desejo espontâneo de aprender é alimentado pelo sentido do belo descoberto em cada aspecto do mundo. Cabe ao professor fazer despertar no aluno o sentido artístico, praticando-o na globalidade das aprendizagens necessárias. E, uma vez mais, não se trata aqui apenas de actividades exteriores: o pintar, o modelar, o tocar música, preenchem-se de uma atitude interior de olhar, ouvir, ver, escutar - de sentir.

É nesta fase que se desenvolve o SENTIR, através da beleza do som da palavra e da frase; da beleza das letras e da beleza na verdade dos números; da beleza do insecto, da árvore, da chuva e da areia. Por amor ao professor, pelo que de belo ele lhe trás do mundo exterior, o aluno esforça-se em fazer bem tudo o que lhe é proposto. Fá-lo a princípio para o professor, aprendendo gradualmente a amar esse mundo; progressivamente passará a esforçar-se pela coisa em si, porque vale a pena. Uma vez mais, é aqui necessário criar um ambiente - a escola - que não contradiga a sensibilidade que desperta e se desenvolve. A sala de aula adquire uma enorme importância: a cor, a luz, os desenhos e pinturas, tudo o que envolve o aluno pode falar-lhe de beleza ou de fealdade. As matérias terão que ser apresentadas de forma artística para evitar o desencanto e o perigo do desinteresse ou até da perversidade. Os contos, as lendas e fábulas, trechos do Antigo Testamento, mitos ou sagas de outros povos e biografias significativas, dão-lhe a imagem do Homem e do seu percurso, por entre o bem e o mal.

No 3o septénio, o raciocínio, que já se vinha desenvolvendo, ganha novas dimensões e o jovem entra na fase da formulação de juízos fundamentados. Ele dispõe agora das forças do PENSAMENTO para penetrar a verdade do mundo com as suas capacidades intelectuais e manuais: ciências naturais e sociais, filosofia, artes, tecnologias. Procura junto dos especialistas o porquê dos fenómenos e das suas leis, quer naturais, quer sociais. Anseia por intervir nesse mundo real e, além das aulas teóricas e práticas, do 9o ao 12o ano participa em estágios em quintas de agricultura biodinâmica e outras, em fábricas e instituições sociais (infantis, de saúde, de 3a idade, etc.), onde toma contacto com a área de trabalho em que possivelmente virá a ser profissional mas, principalmente, tem a oportunidade de conhecer aquelas em que não trabalhará, o que é de extrema importância social!

Do 1o ao 8o ano, o professor-de-classe lecciona o corpo central das disciplinas curriculares, ficando as específicas à responsabilidade de professores próprios: euritmia, música, educação física, línguas estrangeiras e oficinas. Durante este período, o professor pode acompanhar individualmente os alunos e conhecer as suas famílias. Os relatórios anuais de avaliação não são nunca classificativos mas, sim, descritivos do percurso realizado e orientadores para o futuro próximo. São de uma grande intimidade, transmitindo ao aluno a confiança de ser conhecido profundamente pelo professor e dando-lhe segurança nas questões quanto ao caminho a seguir.

Do 9o ao 12o ano, todas as matérias são leccionadas por professores especializados. Nesta fase, o interesse é objectivo e só aquele que é competente na respectiva área se impõe ao respeito do jovem. A avaliação qualitativa pode começar a apresentar indicadores classificativos, principalmente para os que se preparam para ingressar no ensino superior, sujeitando-se voluntariamente às respectivas provas de acesso. Aqui, o exame é inerente à via por que se optou - estudos superiores - e se, muito legitimamente, o medo está presente, é um medo concreto, preciso, dominável pelo indivíduo.

O apelo de liberdade
Chegado o fim da escolaridade, por volta dos dezoito anos, todos os alunos tiveram a oportunidade de conhecer e exercitar as áreas teóricas e práticas que os habilitam a enveredar por imensas possibilidades profissionais: de marceneiro a arquitecto, de ourives a médico, de jardineiro a músico, de electricista a advogado, o leque é quase infinito. Não é raro que um jovem, após ter passado nos exames de acesso à universidade, opte seguidamente por uma profissão manual. A sua escolaridade transmitiu-lhe o sentido de dignidade de QUALQUER área do trabalho humano e, se bem que inserido numa sociedade de discurso diferente, fre-quentemente encontra em si a força individual de seguir uma profissão que lhe traz felicidade e realização pessoal, normalmente ligada à estética ou ao social. Tendo percorrido um programa curricular adequado a cada fase do seu desenvolvimento, pôde adquirir confiança nas suas capacidades e estará preparado para enfrentar, em jovem adulto e ao longo da vida, os desafios que esta lhe trouxer. O medo surgirá sempre e de novo, pontual, objectivo, mas a autoconfiança permitir-lhe-á controlá-lo, ultrapassá-lo e, muito possivelmente, solucioná-lo.

As escolas Waldorf seguem uma pedagogia para a liberdade - e o que é a liberdade senão a libertação dos medos que aprisionam o Homem e o compelem a tomar atitudes erradas contra a Natureza, contra os outros e contra si?

Luísa Pereira
Licenciada em História, Professora do Ensino Secundário; Formada na Escola Livre Antroposófica de Mannheim, na Alemanha.

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